Digressões Cariolistas

04 fevereiro, 2009

Noite Fria em Verão Porteño.

Após algumas horas de caminhada pelas ruas retilíneas de Buenos Aires, resolvera voltar para casa. O cansaço dominava e não tinha mais ânimo para ver pessoas andando para cima e para baixo, preocupadas com sua mediocridade cotidiana. Não que se achasse superior aos demais; o que lhe incomodava era o fato de que ninguém conseguia perceber a melancolia que se escondia sob os olhos risonhos de quem toma sorvete. Além disso, não lhe agradava a atmosfera frívola da calle Florida, com seus descontos de 50, 60 e até 70%, bem como suas infinitas parcelas (sin interés!). Ah, sim... Um banho era exatamente do que precisava para reparar o espírito e para aliviar a sensação angustiante de calor. Sim, voltaria para casa. O mais rápido possível.

Durante o regresso pensava em sua jornada solitária. Estava só há poucas horas, mas estas foram suficientes para fazer brotar-lhe a insatisfação e a má vontade com o resto do mundo. Como era possível que estivesse com esse péssimo humor, por conta de uma partida de poucas horas atrás? Era um capricho seu. E, entendendo o que passava consigo, sentiu-se um ser tão frívolo quanto os que desprezara há poucos minutos. Lembrou-se do episódio das Madres da Plaza de Mayo e quis aproximar sua saudade egoísta à dor da perda de um ente mas, ao se dar conta do absurdo, caiu ainda mais em seu próprio conceito. Resolveu entregar-se de vez e deixou-se contaminar pelos ares floridos do caminho. Olhou uma vitrine, depois outra e mais uma. Era difícil se livrar de tanto aborrecimento. Persistiu. Parou em frente a uma quarta vitrine, mas só conseguiu enxergar seu semblante carregado. Seguiu. Ainda lutava contra seu fluxo de pensamentos, quando viu algo de seu interesse. Entrou na loja, lançou olhares furtivos à direita e à esquerda e achou o que procurava. Próximo ao item que desejava percebeu que outro artigo lhe agradava. Mirou-o, mas distraiu-se ao reparar que muitas outras coisas chamavam sua atenção. E foi assim que, durante três quartos de hora esqueceu a causa de seus resmungos. Ah!, que poder as prateleiras de exposição exercem sob seus admiradores! Deixam tudo melhor e mais bonito; criam necessidades tão agudas quanto o próprio ato de respirar; por fim, apagam as ideias mais profundas dos seres mais concentrados.

A entrada do prédio não estava a mais de cem passos. Carregando algumas (não muitas) sacolas, quis livrar-se das moedas de pesos argentinos, pois deixaria o país na manhã seguinte. Procurou em todos os lados alguém que pudesse se interessar por elas, mas não obteve êxito em sua busca. O mais curioso é que antes, quando elas ainda eram-lhe úteis, surgiam oportunidades a cada esquina, mas agora não restou escolha a não ser devolvê-las ao bolso da calça. Que pena. Justamente quando sua natural generosidade se misturava à culpa...
Entrou na bela construção e agradeceu a si por refugiar-se do sol forte – ainda que já se contassem 19h – e por afastar-se de tanta agitação. Subiu as escadas distraidamente. Talvez ainda estivesse sob o efeito misterioso das prateleiras. Abriu a porta do apartamento e demorou alguns segundos para encontrar sinal da presença das outras pessoas que o ocupavam. Provavelmente isso não ocorreria se o espaço fosse um tanto menor. Dirigiu-se ao cômodo que lhe cabia e, chegando à soleira da porta, subitamente todos os pensamentos melancólicos retornaram. A imagem do quarto vazio, sem os pertences alheios, sem a bagunça usual do armário (em que os objetos de ambos se misturavam), sem a outra roupa de dormir em cima da cama, sem nada que indicasse que outra pessoa estivera ali, até horas atrás, causou-lhe pânico: acabara de reparar que passaria a noite só. Depositou as sacolas no chão e jogou-se na cama. Tentou acalmar-se pensando que logo estariam juntos outra vez. Afinal, as datas de regresso se desencontraram, apenas. Não era motivo para tanto alarde. Resignou-se. Como prêmio por seu bom comportamento, tomou uma ducha bem gelada. Sentiu-se melhor.

Com o intuito de fazer passar o tempo (mal podia esperar pelo reencontro) foi ver o que havia de novo na internet. Pela segunda vez, esqueceu todos os tormentos, mas agora o efeito encantador era outro, embora há quem diga que tal mistério e o das prateleiras tenham a mesma origem. Só recobrou a memória da solidão quando lhe disseram que o jantar estava servido. No entanto, fora apenas um flash, já que a fome sincera tomara-lhe toda a mente. Comeu e decidiu que era hora de ir dormir (durante o sono, as horas passam mais depressa). Encarou a cama vazia com coragem. Sentiu frio durante toda a noite, ainda que suasse com a alta temperatura do verão portenho. Intimamente sabia que nem as cobertas, nem todas as suas roupas e nem mesmo o estômago cheio poderiam aquecer-lhe. A cura ainda não estava ao alcance do mostruário mais próximo.